No seu mundo de movimento, ela seguia tendências e rotina, naquele emaranhado de coisas que era seu dia a dia, concorrido de afazeres, com horas marcadas e metas a cumprir. Família, trabalho, estudo e até o happy hour, tudo era movimento para ela, como o era para toda sua cidade, que também não parava.
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— A vida é movimento. “Navegar é preciso; viver não é preciso.", já dizia o poeta português. - rebatia a quem, por uma razão ou outra, chamava-lhe a atenção sobre sua vida motora. Nisso ela era muito boa, em argumentos que justificassem sua maneira de levar a vida. E seguia, confortavelmente, o transcorrer dos seus dias.
Com seus vinte e poucos anos, levava ela sua rotina com a pressa de quem quer fazer, de quem quer chegar. Nada demais para alguém que almeja “alcançar algo na vida”, você poderá pensar ao ler estas linhas.
— Mas, “de nada adianta ganhar o mundo e perder a sua alma” – Lembrava desse conselho espiritual, geralmente no final da jornada de cada semana, quando seu corpo clamava por descanso e sua mente lhe reportava sinais de estresse, já pouco prováveis de serem solúveis em mais uma tarefa.
E, assim, por virtude ou desencargo de consciência, nos dias de descanso, além de lidar com uma coisa e outra do lar, ia num desses locais de culto, ouvia conselhos sobre prosperidade nesta vida, promessas de uma existência melhor num mundo vindouro. Ali, deixava algumas moedas e voltava, mais uma vez, à jornada que lhe era comum.
Por falar em jornada, ousarei compará-la a uma espiral, com movimentos unívocos do centro para fora. Ela só sabia se dar. Assim o foi para com a família, ao trabalho, aos amigos, aos amores... e era otimista e solidária. Um universo em expansão, posso assim dizer sobre ela.
E tudo seguia bem no amor, na família e no trabalho, só não no jogo, mas também ela não jogava. Até que, em certa manhã de uma segunda-feira, por uma questão laboral, precisou se submeter a uma avaliação. Durante esta, foi notado algo estranho com ela, e tempo depois, diagnosticada com uma grave doença.
Vitimada por um câncer agressivo, parar seria um imperativo. Naquele momento, ela se deu conta de que sua vida tomaria rumo contrário. Tudo passaria de fora para dentro, uma espiral em redemoinho. Suas vivências voltariam para si.
— Tudo o mais além de mim, não passa agora de vaidade de uma vida sem freio. – pensou, naquele instante.
Mas parar seria reaprender a viver, conviver com aquela doença seria algo impensável até agora. Ela até tentava, mas nem sabia o que era pior, o câncer que a consumia ou seu desequilíbrio emocional por tão radical mudança de vida.
Pouco mais de dois meses depois, ela expirou derradeiramente, numa tarde quente de uma quarta-feira. Talvez, o modo como ela não levou o tratamento sugerido tenha antecipado aquele fim dificilmente evitável.
E quem era ela? Ela é aquela pessoa, você e eu. Cada um de nós, quando somos obrigados a parar repentinamente, por alguma razão, e nos voltar a si próprios. E sim, o câncer dela foi apenas uma metáfora da vida, essa vida de autoabuso que nos consome e nos impede do autocuidado, do autoconhecimento, do amor próprio e do crescimento espiritual.
Ela não teve nenhum diagnóstico fatídico, apenas caiu em si, reconheceu a vida doentia que levava, mas sem saber, de imediato, como se reinventar. E isso pode ser pior do que qualquer doença terminal.
E morreu sim. De certo modo, morreu aquela pessoa que a tudo se dava, menos a si; que não se permitia os cuidados necessários a um estado sadio de espírito. E, após algumas semanas de crise existencial, ela retomou sua rotina como uma pessoa melhor, a si mesma.
Porque para esse tipo câncer, o existencial, é mais fácil alcançar a cura quando diagnosticados precocemente, mas nunca é tarde para iniciar o exitoso tratamento da nossa existência, como condição para uma vida sadia para nós e também na vivência com os outros, aos quais venhamos nos dar.
Cleilson Fernandes
Beletrista, filósofo e jornalista, com graduação incompleta em Psicologia. Especialista em Língua Portuguesa: redação e oratória, é mestrando em Letras (Ufma). Poeta e cronista, tem poemas e artigos publicados em diversos periódicos, além de participação nas coletâneas Poesia Arariense (2014) e Literatura Arariense (2018), é autor da coletânea poética Sedenta Procura.
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E-mail: cleilsonfernandes@gmail.com


Excelente! Tudo verdade. Devemos aproveitar esse momento que tivemos que mudar nossa rotina de vida de uma hora para outa para avaliarmos o modo de vida que levamos, muitas vezes sem ver e nem pensar em nós mesmos e muito menos nós outros.8
ResponderExcluirQue bom que gostou! Obrigado pelo feedback!. Forte abraço!
ExcluirViajei muito nessa personagem, justamente por me identificar.
ResponderExcluirExcelente reflexão em tempos que o próprio tempo é incerto.
Que bom que gostou, amigo. Alguns amigos entraram em contato associando a personagem a algumas pessoas próximas, embora eu não tenha me reportado especificamente a uma pessoa real. Mas realmente é algo que tem sido muito comum a muita gente.
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluirObrigado! E vamos agendar seu próximo post. Abraço!
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