João e Inácia nasceram à margem do Mearim, num tempo em que o rio era mais estreito e a cidade de Arari bem mais acanhada. Eram primos legítimos e um dia, movidos por um amor irresistível, desses que mudam completamente a vida da gente, entregaram-se um ao outro com juras de respeito e lealdade. Casaram-se, mesmo contra a vontade de alguns parentes, para seguirem o mesmo caminho, a vida inteira, de mãos dadas e olhos voltados à eternidade.
João fez uma roça no quintal de casa, que se prolongava até o rio moroso - o Mearim passava por ali há tempos imemoriais! Plantava milho, feijão e mandioca, cultivando hortaliças num canteiro que dava gosto observar. Inácia cuidava com zelo do lar e do marido, dando-lhe cinco filhos, três meninos e duas meninas, razão das grandes lutas e das pequenas alegrias.
Os anos se passaram, as crianças cresceram, casaram-se e deram netos a João e a Inácia, que agora viviam sozinhos, como no dia em que resolveram se juntar para ficarem unidos a vida toda. Diferentemente dos muitos sonhos, envelhecidos e esquecidos, o amor do casal idoso manteve-se intacto, coberto pelo manto sagrado do respeito, perfumado pela fragrância inexprimível da lealdade.
Nos fins de tarde, quando o sol preguiçoso se escondia no horizonte, João pegava a velha canoa, colocava a esposa confortavelmente sentada na proa e saía a navegar pelas águas do Mearim, eriçadas pelo vento frio que prenunciava a noite. Voltavam quando já estava escurecendo, plenos de carinho um pelo outro.
Certo dia, uma doença vinda de longes terras, lá da China, assustou a cidade de Arari. E Inácia, que precisava ir ao banco uma vez por mês para sacar o dinheiro da aposentadoria, seria acertada pelo vírus errante. Ficou isolada num dos quartos da casa, distante do marido, recebendo assistência de uma enfermeira, que a visitava uma vez por semana. Aquele afastamento era pior que a doença que lhe devorava os pulmões: atingia-lhe o coração, amargurado pela saudade cortante. E João, tão perto e ao mesmo tempo tão longe da esposa, mergulhou numa tristeza sem fim.
Inácia definhava a olhos vistos, para desespero de João, que passou a cuidar da esposa sem qualquer proteção, ignorando a máscara e as recomendações médicas, que exigiam o completo isolamento da mulher amada. Logo estaria infectado também.
Cansado da vida no interior daquele quarto inóspito, um dia João tomou Inácia pela mão e, com imenso esforço, conseguiu levá-la até a canoa. Era fim de tarde e o céu se vestia no manto vermelho da saudade. Devidamente sentada na proa da canoa, Inácia sorriu docemente, plena de contentamento, afagando o coração do marido. A canoa deslizou suavemente nas águas do velho Mearim, rumo à eternidade, para nunca mais voltar.
PEDRO NETO
Contista, cronista e poeta. Email: pedronetogeo2015@gmail.com

Que texto maravilhoso, cheio de paz, leveza e muitoooo amooor ����❤
ResponderExcluirNossa! Que texto! Revivi os passos e aventuras fluviais desse amor no remanso da existência, em cada linha lida. Imerso no enredo desses viventes, não tive como ficar indiferente ao ocaso da crônica e ao desfecho de suas personagens. Lindo, dramático e envolvente o texto, como é a vida, o amor e as pessoas por eles unidas.
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